Entre um burburinho sem fim de vozes inquietas, procuro pela senhora cujo nome estava numa ficha amarela da emergência com "cadeira de rodas"escrito na borda da folha à caneta. Procuro no corredor e quando a vi ao lado do marido, imaginei boa parte da história. A senhora M. tinha 56 anos e apresentava esclerose lateral amiotrófica (ELA), uma doença que acomete o segundo neurônio motor (relativo aos nervos da motilidade). E por isso já havia perdido o movimento das pernas, pés, braços, mãos, além de ter perdido a capacidade de articular as palavras. Conseguia ainda emitir alguns sons, piscar e movimentar o pescoço, o que permitiu a nossa comunicação. Estabelecer um diálogo com limitações é um desafio, mas como diz uma amiga, quem quer se comunicar, se comunica. A sr. M era muito simpática e engraçada! Estava (quase) sempre com um sorriso no rosto, e em alguns momentos enquanto seu marido me relatava a história, ela olhava pra mim com uma expressão que dizia "não foi desse jeito que ele está falando!". A relação marido-e-mulher, companheiros de longa data, era visível nos mínimos detalhes. Quando o marido falava que ela era teimosa, ela olhava pro lado oposto ao dele, fixando o olhar na parede com a uma expressão brava. Ora ele falava e ela ria, zombando dele. E os dois ficavam numa relação de minúcias expressivas. Eles estavam ali porque a sr. M havia acordado de madrugada com dor de cabeça, mas já estava bem. Perguntei se tinha algo mais a incomodando, e ela disse que sim balançando a cabeça. Bom, teria então que descobri o que. Perguntei se era dor, ela balançou a cabeça negativamente. Perguntei se era algo no corpo e respondeu afirmativamente. É na cabeça? Não. É no pescoço? Não. No peito? Não. Nos braços? Não. Na barriga? Não. Na coxa? Não. No joelho? Sim. Direito? Não. Bem, então é no joelho esquerdo, mas não é dor. Você sente o músculo tremendo? E com um baita sorriso no rosto, faz que sim com a cabeça repetidamente, comemorando a descoberta! Esses tremores musculares, conhecidos como miofasciculações, são sintomas comuns na ELA no processo de degeneração nervosa. E continuei: tem mais alguma coisa te incomodando? Ela fez que sim. É algum outro incômodo no corpo? Não. É pra respirar? Não. É pra comer? Não. É pra dormir? E ela faz que sim, já chorando, emocionada. Entendi que a dificuldade para dormir era enorme. Ela já fazia uso de medicação, mas não estava ajudando. Na emergência, sem receita azul, o que me restava era prescrever um remédio disponível no posto que ajuda a dormir e escrever uma carta ao médico do posto e outra ao neurologista, relatando os incômodos da paciente. Expliquei pra senhora M. e perguntei se tinha mais alguma coisa. Ela fez que não. Escrevi tudo que precisava e entreguei pro marido. Ela fez sons e apontou pro papel. Eu perguntei se ela queria ler e ela fez que sim. O marido colocou o papel na frente dela, mas ela fez sons olhando pra mim. Perguntei se ela queria que eu lesse, e ela fez que sim! O marido disse que ela sempre foi muito curiosa! Todos nós rimos! Eu li as duas cartas e nunca mais a vi.
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